Rafael
PREBOSTE E JUÍZ
Albert
Pike, in Moral e Dogma
A
lição que este grau nos traz é a Justiça, nas decisões e no juízo, assim como
nas nossas relações e trato com outros homens.
Numa
nação onde o julgamento com jurados é conhecido, todo o homem inteligente pode
ser chamado a actuar como jurado, quer o seja unicamente de facto, ou como de facto e
de direito,(1) e a assumir a pesada responsabilidade que lhe acarreta esse
compromisso. Aqueles que são investidos com este poder devém julgar todas as
causas com escrúpulo e imparcialidade, sem nenhum tipo de consideração face ao
poder do poderoso, aos subornos do rico ou às necessidades do pobre. Esta é a
norma cardinal, que ninguém discutirá, ainda que muitos não a observem. Mas não
basta isso. Devem despojar-se de preconceitos e ideias preconcebidas. Devem
escutar pacientemente, recordar com precisão e analisar cuidadosamente os
factos e argumentos que se apresentam perante eles. Não devem lançar-se
precipitadamente a tirar conclusões, nem formar opiniões antes de ter ouvido
todas as partes. Não devem pressupor crime ou fraude. Nem devem ser tomados por
uma obstinação teimosa, nem devem ser obstinados contra os pontos de vista e
raciocínios alheios. Ao perscrutar o móbil de um facto provado não se deve
presumir nem a melhor, nem a pior das intenções, se não aquela que ache que o
mundo teria como justa e objectiva se fosse qualquer outra pessoa a levá-la a
cabo; nem deve, por mera vaidade de se mostrar dotado de agudeza e sagacidade,
esforçar-se por dar importância a pequenas circunstâncias que por si nada
representariam, mas associadas a factos de relevo lhes poderiam acrescentar
alguma aparente agravante. Estas são regras fundamentais que qualquer jurado
deve observar.
No
trato com o próximo há duas classes de injustiça: a primeira é a daqueles que
provocam um prejuízo; a segunda é a dos que têm em sua mão desviar um prejuízo
daqueles a quem é dirigido, e todavia não o fazem. Desta forma, a injustiça pode
cometer-se de forma activa de duas maneiras, por força e por fraude. Por força,
realizada à maneira do leão, e por fraude, realizada à maneira da raposa. Mas
resultando ambas totalmente repugnantes perante o dever cívico, sendo, aliás,
mais detestável a injustiça por fraude.
Qualquer
dano causado por uma pessoa a outra, seja porque afecte a sua pessoa, a sua
fazenda ou a sua reputação é um delito contra as leis da Justiça. O âmbito
deste Grau é portanto amplo e vasto; e a Maçonaria persegue, da forma mais
enérgica possível, a defesa da lei e da Justiça, e da forma mais efectiva
possível a prevenção da maldade e da injustiça. Com esta finalidade ensina esta
grande e transcendente verdade: que a maldade e a injustiça, uma vez praticadas,
não podem ser desfeitas, outrossim são eternos em suas consequências, e uma vez
consumados passam a fazer parte do Passado irrevogável; que o mal perpetrado
contenha seu próprio castigo tão certa e naturalmente como a bolota nasce do carvalho.
Se as consequências são o seu próprio castigo, então não precisa de maior
penitência, pois não a pode haver mais pesada; estão implícitas no próprio
cometimento da falta, e não podem ser separadas dela. Um mal causado ao próximo
é um crime contra a nossa própria Natureza, um delito contra a nossa própria
alma que desfigura a imagem da Beleza e do Bem. O castigo não é a execução de
uma sentença, mas sim a sucessão de um efeito. Está escrito que o dito castigo sucede
ao facto culpável, não por um decreto de Deus como juiz, mas sim por uma lei
decretada por Ele como Criador e Legislador do Universo. Não se trata de um
artifício acessório, mas sim de uma consequência lógica e ordinária; e portanto
deve ser suportada pelo infractor, e através dele pode influenciar outros. É a
decisão da infinita justiça de Deus, sob a forma de Lei.
Não
pode haver interferência, nem moderação, nem protecção perante os efeitos
naturais dos nossos maus actos. Deus não se interporá entre a causa e a sua
consequência; e por isso não pode haver perdão para os pecados. Podemos
arrepender-nos do acto que contaminou a nossa alma, e pode ele ser expiado, mas
o dano está feito. O pecado pode ser redimido por esforços posteriores, e a
mancha lavada por amargos esforços e severos sofrimentos; mas os esforços e a constância
que poderiam ter elevado a alma ao mais alto nível esgotam-se agora tentando
unicamente recuperar aquilo que se perdeu. Deve haver sempre uma clara
diferença entre quem unicamente cessa de praticar o mal e aquele que sempre
praticou o bem.
Sem
dúvida observará de forma muito mais escrupulosa a sua conduta, e olhará mais
para os seus próprios actos, aquele que crê que esses actos arrastam
inevitavelmente as respectivas consequências naturais e irremediáveis, que não
aquele que acredita que a penitência e o perdão poderá romper em qualquer
momento a cadeia de consequências. Seguramente cometeremos menos infracções e
injustiças se tivermos arraigadas em nossas almas a convicção de que todo o
facto está feito de forma tão irrevogável que nem a omnipotência de Deus pode
desfazer o acontecido, e não pode tornar em não-feito
o que foi feito; que cada acto nosso leva seu próprio fruto, conforme a leis
inalteráveis que devem permanecer para sempre irrevogavelmente escritas nas
Tábuas da Natureza Universal.
Se
fizeste mal a outrem, podes afligir-te, arrepender-te e tomar a resoluta
determinação de não voltar a fraquejar no futuro. Também podes, na medida do possível,
reparar o facto. Isso está certo. A parte prejudicada pode perdoar-te, tal como
o entende a linguagem humana; porém o feito, feito está, e ainda que todos os
poderes da Natureza conspirem a teu favor, não podem desfazê-lo. As
consequências para a alma, ainda que nenhum homem possa percebê-lo, estão aí, escritas nos anais do Passado,
reverberando através do tempo.
O arrependimento por um mau acto leva consigo,
como qualquer outro acto, o seu próprio efeito, o efeito de purificar o coração
e emendar o futuro, mas não o efeito de apagar o passado. Perpetrar o mal é um
acto irrevogável, mas não incapacita a alma de fazer o bem no futuro. As suas
consequências não podem ser apagadas, mas o seu curso não precisa de ser
seguido. A maldade e a perversidade perpetradas, ainda que irrevogáveis, não
acarretam desespero, mas sim maiores esforços do que anteriormente. O
arrependimento é todavia tão válido como sempre, mas é válido para assegurar o
futuro, não para esconder o passado. Inclusivamente as vibrações do ar, uma vez
postas em movimento pela voz humana, não cessam com os sons que as originaram.
A sua intensidade atenua-se rapidamente e se torna inaudível para o ouvido
humano. Mas as ondas de ar assim elevadas sobrevoam a superfície da terra e os
oceanos, e em menos de 20 horas cada átomo da atmosfera se impregna do
movimento devido a essa porção infinitesimal de movimento primitivo que foi
conduzido ali através de incontáveis canais, e que deve continuar exercendo a
sua influência durante a sua existência futura. O ar é uma vasta biblioteca em
cujas páginas se escreve para sempre o que o homem tenha dito ou inclusivamente
sussurrado. Aí, em seus caracteres mutáveis mas infalíveis, misturados com os
primitivos, assim como com os últimos sinais de mortalidade, permanecem
gravados para sempre votos quebrados e promessas incumpridas, perpetuando, nos
movimentos de cada partícula, todas em uníssono, o testemunho da inconstante
vontade do homem. Deus lê esse livro, embora nós não o possamos fazer. Desta
forma, a terra, o ar e o oceano são as eternas testemunhas dos actos que
realizamos. Nenhum movimento levado a cabo pela Natureza ou por obra humana
será jamais apagado. A pista de cada quilha que tenha sulcado a superfície do
oceano permanece para sempre registada nos futuros movimentos de todas as
partículas que ocuparam esse lugar. Todo o criminal está irrevogavelmente
encadeado no testemunho do seu crime pelas leis do Todo-Poderoso, pois cada
átomo do seu corpo mortal, apesar de quantas mudanças experimentem as suas
partículas, reterá todavia, aderindo a ele através de todas as combinações, algum
movimento derivado do mesmo esforço muscular com que perpetrou o crime. Que
aconteceria se as nossas faculdades fossem tão aperfeiçoadas numa vida futura que
nos permitissem perceber e rastrear as consequências inapagáveis de nossas
palavras incumpridas e feitos perversos, e tornar a nossa culpa e dor tão
eternos como essas consequências? Não é possível conceber castigo mais
terrífico para uma inteligência superior do que o de contemplar, que a sua
acção permanecerá eternamente em acto, uma maldade sempre latente para além da memória
dos homens!
A
Maçonaria, através dos seus ensinamentos, tenta levar as pessoas a não consumar
injustiças, maldades e ultrajes. Ainda que não pretenda usurpar o lugar da
religião, o seu código moral procede, desde logo, de princípios muito
diferentes dos da lei civil, de forma que reprova e castiga ofensas que nem a
lei nem a opinião pública condenam. Na lei maçónica, enganar e exagerar no
comércio, no tribunal e na política não se consideram pecados mais veniais que
o roubo, nem uma mentira deliberada mais venial que o perjúrio, nem a calúnia
inferior ao desfalque, nem a sedução mais venial que o assassinato. A Maçonaria
condena especialmente aquelas maldades nas quais o infractor induz outros a
tomar parte. Ele pode arrepender-se; pode, após esforços angustiados, retomar o
caminho da virtude; a sua alma pode purificar-se através de muita angústia e
muita luta interior; mas a criatura débil que ele desencaminhou e a quem fez
cúmplice da sua culpa não pode obrigá-lo a ser cúmplice do seu arrependimento e
emenda. E ele pode compungir-se, mas não pode mudar o caminho errado do outro a
quem ensinou a dar o primeiro passo para a perdição, um caminho de que o mesmo
é testemunha inevitável. Como vamos falar então de perdão dos pecados?
Unicamente se pode falar de um castigo perpétuo e inevitável, que nenhum
arrependimento pode aliviar nem aplacar nenhuma piedade.
Esforçamo-nos
por ser justos ao julgar os motivos dos outros homens. Apenas nada conhecemos
dos verdadeiros méritos ou deméritos de qualquer semelhante. Raras vezes conhecemos
com certeza se este homem é mais culpável que aquele outro, ou inclusivamente
se este homem é muito bom ou muito perverso. Com frequência os homens mais
depravados deixam atrás de si excelentes reputações. Haverá alguém de entre nós
que, ao longo da sua vida, não tenha estado em algum momento a ponto de cometer
um crime? Cada um de nós pode olhar para trás e estremecer ao contemplar o
momento em que os os seus pés resvalavam junto do precipício em que se despenha
o abismo da culpa; e se a tentação tivesse sido algo mais intensa, ou algo mais
continuada, ou se a penúria tivesse apertado um pouco mais, ou um pouco mais de
vinho tivesse turvado o nosso intelecto, destronado o nosso juízo e despertado
as nossas paixões, os nossos pés teriam resvalado, e nós teríamos caído para
não nos levantarmos jamais.
Podemos
dizer: “Este homem mentiu, roubou,
falsificou, desfalcou dinheiros que lhe foram confiados; todavia esse passou a
vida com as mãos limpas”. Porém não podemos afirmar que o primeiro não
lutou arduamente, ainda que sem êxito, contra tentações sob as que o segundo
havia sucumbido sem esforçar-se. Podemos dizer quem tem as mãos mais limpas
perante os homens, mas não quem tem a alma mais limpa perante Deus. Podemos
afirmar: “Este homem cometeu adultério,
mas esse outro todavia sempre foi casto”. Porém não podemos saber se a
inocência desse homem pode ter sido devida à frieza do seu coração, à ausência
de motivo, à presença de medo ou à pequenez da tentação; nem se a caída do
outro pode ter sido precedida por luta interior mais veemente, causada pelo
frenesim mais esmagador, e expiada pelo arrependimento mais sincero. A
generosidade, assim com a mesquinhez, pode ser um resultado do temperamento
natural; e perante os olhos do Céu, uma larga vida de beneficência pode ter
custado menos esforço e indicar menos virtude, sacrifício e interesse que uns
poucos e raros actos virtuosos e escondidos arrancados por dever da alma
reticente e evasiva de outro. Pode haver mais mérito real, mais esforço e
sacrifício, mais presença dos mais nobres elementos da grandeza moral numa vida
de fracasso, pecado e vergonha do que numa trajectória, a nosso ver, de
integridade imaculada.
Quando
condenamos ou mostramos compaixão pelo caído, como haveremos de saber se
tivéssemos sido tentados como ele, não teríamos caído como ele, até com menos
resistência? Como saberíamos o que faríamos se nos encontrássemos sem trabalho
nem sustento, morrendo de fome, esfaimados e desfalecidos, enquanto nossos
filhos choravam pedindo pão? Nós não caímos porque não somos suficientemente
tentados. Aquele que caiu pode ser em seu coração tão honesto como nós. Como
podemos estar seguros de que nossa filha, irmã ou esposa poderia resistir ao
abandono, à desolação, à loucura ou à tentação que sacrificaram a virtude da
filha de outros e a fizeram cair na vergonha? Talvez que não tenham caído
porque não foram realmente tentadas! É atitude sábia rezar para não ser expostos
às tentações.
A
justiça humana é sempre incerta. Quantos assassinatos judiciais se cometeram
devido à ignorância do fenómeno da loucura! Quantos homens enforcados por
assassinato não eram de coração menos assassinos do que o jurado que os
processou e o juiz que os sentenciou! Bem pode duvidar-se se a administração
das leis humanas, em cada país, não é senão uma gigantesca onda de injustiça e
maldade. Deus não vê como vê o homem; e o criminoso mais abandonado, sombrio
como o mundo o considera, pode ter mantido acesa uma pequena luz bruxuleando
num cantinho da sua alma, luz que bem poderia ter-se extinto desde há muito
tempo naqueles que caminham orgulhosos no enlevo da fama impoluta, se tivessem
sido provados e tentados como o pobre foragido. Nem sequer conhecemos a vida exterior do homem. Não somos competentes
para nos pronunciar nem sequer sobre seus feitos.
Não conhecemos nem a metade de actos virtuosos nem perversos, nem sequer dos
nossos semelhantes mais próximos. Não podemos dizer, com certeza, nem sequer de
nosso amigo mais íntimo, que não cometeu um pecado concreto, ou incumpriu um
mandamento particular! Que cada homem pergunte a seu coração! De quantos de
nossos melhores e piores actos e qualidades são ignorantes os nossos mais
íntimos amigos! Por quantas virtudes que realmente não possuímos nos admira o
mundo, e por quantos vícios, dos quais realmente não somos escravos, nos
condena? Não há senão uma pequena parte de nossos actos e pensamentos malvados
que realmente sai à luz, do mesmo modo que é pequeno o número de bondades
redentoras visíveis. A maior parte é unicamente visível por Deus.
Portanto,
seremos justos ao julgar outros homens unicamente quando nos mostremos
caritativos; e devemos assumir a prerrogativa de julgar aos outros unicamente
quando esse dever nos seja imposto, dado que com quase total segurança
erraremos, e sérias serão as consequências que se derivarão do nosso erro.
Nenhum homem deve cobiçar o ofício de juiz, pois ao aceitá-lo assume a
responsabilidade mais grave e opressiva. E sem embargo, tu assumiste-la, e todos
a temos assumido, pois o homem está sempre pronto a julgar e está sempre pronto
a condenar o seu vizinho, ao mesmo tempo que se absolveria a si próprio pelos
mesmos factos. Trata, por isso, de exercer o teu dever cautelosa e
caritativamente, pois de contrário, ao submeter o criminoso a juízo, cometes um
mal cujas consequências devem ser igualmente eternas.
As
faltas, crimes e desvarios de outros homens não carecem de importância para
nós, outrossim fazem parte do nosso universo moral. A guerra e o derramamento
de sangue longe de nós, assim como as fraudes que não afectam directamente o
nosso interesse pecuniário, não deixam de afectar os nossos sentimentos e minar
o nosso bem-estar moral. Estes factos afectam muito a um coração consciente. O
olho público pode olhar despreocupadamente sobre a miserável vítima de um
vício, e essa ruína de ser humano pode provocar uma explosão de riso e de
escárnio. Mas para o maçom o que está perante os seus olhos é uma forma sagradamente
humana; é um irmão que errou; é uma alma desolada, desesperada e abandonada; e
os pensamentos do maçom a respeito do pobre mendigo estarão bem longe da
indiferença, do ridículo ou do desdém. Todas as ofensas humanas, todo o sistema
de desonestidade, indiferença, duplas intenções, piedade proibida e ambição
intrigante sob cuja influência os homens lutam uns com os outros, será
compreendido por um maçom sensato não unicamente como o cenário de afãs
perversos e lutas, mas também como o conflito solene de mentes imortais cujas
consequências são vastas e transcendentes como aqueles que o protagonizam. É
uma luta triste e ignominiosa, e bem pode observar-se com indignação; mas essa
indignação deve transformar-se em piedade. Pois as apostas que estes jogadores
fazem não são as que eles imaginam, nem tão pouco as que acreditam estar a ver.
Por exemplo, este homem que luta por um pequeno cargo, e o ganha, na realidade
ganhou com intriga, calúnia, engano e falta de caridade.
Os
homens bons estão realmente orgulhosos da sua bondade. São respeitáveis, a
desonra não os incomoda, a sua moderação goza de peso e influência, as suas
roupas estão imaculadas e o venenoso alento da calúnia nunca se verteu sobre a
sua fama. Quão fácil é para eles olhar com desdém o pobre e degradado criminoso,
ultrapassá-lo com passo dianteiro e arregaçar as calças para que não se manchem
na imundície! E sem embargo o Grande Mestre da Virtude não procede assim, antes
porém rebaixa-se ao trato familiar com vadios e pecadores, com a mulher
samaritana, com os proscritos e párias do mundo hebreu.
Muitos
homens sentem-se melhor na medida em que podem detectar pecado nos demais.
Quando se assomam ao catálogo de desafortunados excessos no temperamento ou na conduta
do seu vizinho, amiúde, ao mesmo tempo que mostram grande preocupação, sentem-se
secretamente exultantes, pois isso destrói todas as suas pretensões de
sabedoria e moderação, inclusivamente de virtude. Muitos, inclusivamente,
recriam-se com os pecados dos demais, e isto é o habitual naqueles cujos
pensamentos se entretêm em agradáveis comparações com as suas próprias virtudes
e os pecados do próximo.
O
poder da amabilidade vê-se demasiado pouco no mundo, vê-se pouco a influência
invisível da piedade, o poder do amor, o domínio da doçura sobre a paixão, a
majestade soberana desse perfeito carácter que junta a uma profunda censura uma
caridosa piedade pelo criminoso. Mas é assim que o maçom deve tratar os seus
irmãos desencaminhados. Não com amargura, nem com cordial ligeireza, nem com
indiferença mundana, nem com frialdade filosófica, nem com uma consciência
lasciva que encontre tudo bem e que seja bem aceite pela opinião pública, senão
com caridade, e amorosa e piedosa amabilidade.
O
coração humano não se inclinará voluntariamente perante o que há de obscuro e
mesquinho na natureza humana. Se o coração se enternece perante nós, deve
enternecer-se perante o que há de divino em nós. A maldade do meu vizinho não
pode submeter-se à minha maldade; os seus apetites, por exemplo, não podem
submeter-se à minha fúria contra os seus vícios, pois os meus defeitos não são
o instrumento para corrigir as suas faltas. E por isso reformadores
impacientes, pregadores denunciantes, acusadores inflexíveis, pais enfadados e
em geral familiares irritáveis não conseguem, cada um ao seu redor, emendar os
comportamentos extraviados.
Uma
ofensa moral é doença, dor, perda e desonra no que de imortal há no homem. É
culpa, e miséria acrescida à culpa. É calamidade em si mesma, e acresce sobre
ela mesma a calamidade ainda maior de ser condenada por Deus, o aborrecimento
de todos os homens virtuosos e a própria reprovação da alma. Trata fielmente, mas
com paciência e ternura, este mal! Não é digno de converter-se em provocação,
nem de tornar-se em querela, nem de acender a tua irritação. Fala cortesmente a
teu irmão que erra. Deus compadece-se de ti: Cristo morreu por ele, e a
Providência aguarda-o. A piedade do Céu busca-o e os espíritos celestes estão
prontos a recebê-lo de novo com alegria. Faz com que a tua voz soe em uníssono
com todas essas potestades que Deus está empregando para recuperá-lo!
Se
alguém te defrauda, e exulta por isso, é o ser humano que mais piedade deve
despertar, pois infligiu a ele próprio uma ferida muito mais profunda do que
aquela que te infligiu a ti. É a ele, e não a ti, a quem Deus observa com
reprovação e compaixão ao mesmo tempo, e o Seu juízo deveria ser a tua lei.
Entre todas as bênçãos desde o monte Sagrado não há nem uma para este homem, todavia,
para o misericordioso, o pacífico e o perseguido as bênçãos derramam-se
prodigamente.
Todos
somos homens de semelhantes paixões, inclinações e tentações. Há elementos em
todos nós que poderiam ter sido pervertidos, através de sucessivos processos de
deterioração moral, até desembocar no pior dos crimes. O delinquente empurrado
para o cadafalso pela multidão vociferante não é pior do que aquilo a que qualquer
um dessa multidão poderia ter chegado perante circunstâncias semelhantes. Sem
dúvida, deve ele ser condenado, mas sob profunda compaixão. Ser vingativos, inclusive com os piores criminosos, torna-nos fracos e converte.nos em pecadores.
Devemos
muito à boa Providência de Deus, que nos dotou com muito mais virtude do que
maldade. Mas todos transportamos dentro de nós o que nos poderia levar aos
mesmos excessos, fazendo-nos cair, como ele, com alguma tentação. Talvez
tivéssemos cometido actos que, proporcionalmente à tentação ou provocação,
pudessem ser menos desculpáveis do que o seu grande crime. A silenciosa piedade
e comiseração pela vítima deveria juntar-se ao nosso repúdio pela culpa.
Inclusivamente o pirata que assassina a sangue frio através dos mares, é um
homem como tu ou eu o poderíamos ser. O orfanato na infância, ou uns pais
depravados e dissolutos, ou uma juventude sem amigos, ou as más companhias, ou
a ignorância e impossibilidade de cultivar-se moralmente; as tentações do
prazer pecaminoso ou a pobreza extrema; a familiaridade com o vício; um apelido
maldito e vilipendiado; sentimentos feridos e destroçados; situações
desesperadas; estes são os passos que podiam ter levado a qualquer um de nós a
desfraldar a sangrenta bandeira de desafio universal sobre os quatro mares, a
declarar a guerra aos da nossa espécie, a viver a vida e morrer a morte do pirata
temerário e sem remorsos. Os afectos que recebeu inspiram-nos compaixão com a sua
falta de sorte. A sua cabeça descansou uma vez sobre o regaço de uma mãe. Por
uma vez foi alvo de amor familiar e carinho caseiro. Talvez que a sua mão,
desde então vezes sem conta manchada de sangue, tenha tomado outra pequena mão
amorosa no altar. Compadece-te dele, pois, e compadece-te das suas esperanças
de felicidade e do seu coração destroçado. É próprio de criaturas frágeis e
imperfeitas como nós actuar assim; deveríamos lamentar o crime, mas lamentá-lo
como criaturas débeis, tentadas e resgatadas. Pode ser que quando Deus avalie
os crimes dos homens, tenha em consideração as tentações e as circunstâncias
adversas que os conduziram a eles, e as oportunidades de cultura moral do
delinquente; e pode ser que as nossas próprias ofensas pesem mais do que
esperamos, e as do assassino sejam mais leves do que considerou o juízo dos
homens. Portanto, e tendo em conta tudo o que fica dito, que o verdadeiro maçom
nunca esqueça esta norma solene, que deve ser observada em todas as situações: “não julgueis se não quereis ser julgados,
pois que com a mesma regra com que medis os outros, assim sereis vós próprios
medidos”. Tais são os ensinamentos que promulga o Preboste e Juiz.
(1)Os termos de facto
e de direito são figuras legais do direito anglo-saxão. Quando um jurado decide
de facto pronuncia-se se um facto aconteceu ou não. Quando o faz de facto e de
direito pronuncia-se também sobre a consideração legal do facto. Se um jurado
chega à conclusão de que, por exemplo “uma criança de cinco anos foi abandonada
durante horas”, está-se pronunciando de facto. Se além disso tem poder para
decidir que esse facto constitui um delito de negligência por parte do seu
tutor, então decide de facto e de direito. (nota do autor)
(tradução
livre de Agostinho Costa)
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